10 de dezembro de 2011

14º dia de advento: Morte e Vida, Severina

Quadro de Descartes Gadelha (Guerra  diariamente)

CHEGANDO AO RECIFE, O RETIRANTE SENTA-SE PARA DESCANSAR AO PÉ DE UM MURO ALTO E CAIADO E OUVE, SEM SER NOTADO, A CONVERSA DE DOIS COVEIROS

— O dia de hoje está difícil;
não sei onde vamos parar.
Deviam dar um aumento,
ao menos aos deste setor de cá.
As avenidas do centro são melhores,
mas são para os protegidos:
há sempre menos trabalho
e gorjetas pelo serviço;
e é mais numeroso o pessoal
(toma mais tempo enterrar os ricos).


— Pois eu me daria por contente
se me mandassem para cá.
Se trabalhasses no de Casa Amarela
não estarias a reclamar.
De trabalhar no de Santo Amaro
deve alegrar-se o colega
porque parece que a gente
que se enterra no de Casa Amarela
está decidida a mudar-se
toda para debaixo da terra.

— É que o colega ainda não viu
o movimento: não é o que se vê.
Fique-se por aí um momento
e não tardarão a aparecer
os defuntos que ainda hoje
vão chegar (ou partir, não sei).
As avenidas do centro,
onde se enterram os ricos,
são como o porto do mar:
não é muito ali o serviço:
no máximo um transatlântico
chega ali cada dia,
com muita pompa, protocolo,
e ainda mais cenografia.
Mas este setor de cá
é como a estação dos trens:
diversas vezes por dia
chega o comboio de alguém.

— Mas se teu setor é comparado
à estação central dos trens,
o que dizer de Casa Amarela
onde não pára o vaivém?
Pode ser uma estação
mas não estação de trem:
será parada de ônibus,
com filas de mais de cem.

— Então por que não pedes,
já que és de carreira, e antigo,
que te mandem para Santo Amaro
se achas mais leve o serviço?
Não creio que te mandassem
para as belas avenidas
onde estão os endereços
e o bairro da gente fina:
isto é, para o bairro dos usineiros,
dos políticos, dos banqueiros,
e no tempo antigo, dos banguezeiros
(hoje estes se enterram em carneiros);
bairro também dos industriais,
dos membros das associações patronais
e dos que foram mais horizontais
nas profissões liberais.
Difícil é que consigas
aquele bairro, logo de saída.

— Só pedi que me mandassem
para as urbanizações discretas,
com seus quarteirões apertados,
com suas cômodas de pedra.

— Esse é o bairro dos funcionários,
inclusive extranumerários,
contratados e mensalistas
(menos os tarefeiros e diaristas).
Para lá vão os jornalistas,
os escritores, os artistas;
ali vão também os bancários,
as altas patentes dos comerciários,
os lojistas, os boticários,
os localizados aeroviários
e os de profissões liberais
que não se liberaram jamais.

— Também um bairro dessa gente
temos no de Casa Amarela:
cada um em seu escaninho,
cada um em sua gaveta,
com o nome aberto na lousa
quase sempre em letras pretas.
Raras as letras douradas,
raras também as gorjetas.

— Gorjetas aqui, também,
só dá mesmo a gente rica,
em cujo bairro não se pode
trabalhar em mangas de camisa;
onde se exige quépi
e farda engomada e limpa.

— Mas não foi pelas gorjetas,
não, que vim pedir remoção:
é porque tem menos trabalho
que quero vir para Santo Amaro;
aqui ao menos há mais gente
para atender a freguesia,
para botar a caixa cheia
dentro da caixa vazia.

— E que disse o Administrador,
se é que te deu ouvido?

— Que quando apareça a ocasião
atenderá meu pedido.

— E do senhor Administrador
isso foi tudo que arrancaste?

— No de Casa Amarela me deixou
mas me mudou de arrabalde.

— E onde vais trabalhar agora,
qual o subúrbio que te cabe?

— Passo para o dos industriários,
que é também o dos ferroviários,
de todos os rodoviários
e praças-de-pré dos comerciários.

— Passas para o dos operários,
deixas o dos pobres vários;
melhor: não são tão contagiosos
e são muito menos numerosos.

— É, deixo o subúrbio dos indigentes
onde se enterra toda essa gente
que o rio afoga na preamar
e sufoca na baixa-mar.

— É a gente sem instituto,
gente de braços devolutos;
são os que jamais usam luto
e se enterram sem salvo-conduto.

— É a gente dos enterros gratuitos
e dos defuntos ininterruptos.
— É a gente retirante
que vem do Sertão de longe.

— Desenrolam todo o barbante
e chegam aqui na jante.

— E que então, ao chegar,
não têm mais o que esperar.

— Não podem continuar
pois têm pela frente o mar.

— Não têm onde trabalhar
e muito menos onde morar.

— E da maneira em que está
não vão ter onde se enterrar.

— Eu também, antigamente,
fui do subúrbio dos indigentes,
e uma coisa notei
que jamais entenderei:
essa gente do Sertão
que desce para o litoral, sem razão,
fica vivendo no meio da lama,
comendo os siris que apanha;
pois bem: quando sua morte chega,
temos que enterrá-los em terra seca.

— Na verdade, seria mais rápido
e também muito mais barato
que os sacudissem de qualquer ponte
dentro do rio e da morte.

— O rio daria a mortalha
e até um macio caixão de água;
e também o acompanhamento
que levaria com passo lento
o defunto ao enterro final
a ser feito no mar de sal.

— E não precisava dinheiro,
e não precisava coveiro,
e não precisava oração
e não precisava inscrição.

— Mas o que se vê não é isso:
é sempre nosso serviço
crescendo mais cada dia;
morre gente que nem vivia.

— E esse povo lá de riba
 de Pernambuco, da Paraíba,
que vem buscar no Recife
poder morrer de velhice,
encontra só, aqui chegando
cemitérios esperando.

— Não é viagem o que fazem,
vindo por essas caatingas, vargens;
aí está o seu erro:
vêm é seguindo seu próprio enterro.

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