6 de dezembro de 2011

10º dia do Advento: Morte e Vida, Severina

Foto de Arnaldo Vitorino da Silva


DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS, DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ

— Muito bom dia senhora,
que nessa janela está
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?

— Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?

— Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.

— Isso aqui de nada adianta,
poucos existe o que lavrar
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia por lá?

— Também lá na minha terra
de terra mesmo pouco há
mas até a calva da pedra
sinto-me capaz de arar.

— Também de pouco adianta,
nem pedra há aqui que amassar
diga-me ainda, compadre,
que mais fazias por lá?

— Conheço todas as roças
que nesta chã podem dar
o algodão, a mamona,
a pita, o milho, o caroá.

— Esses roçados o banco
já não quer financiar
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia lá?

— Melhor do que eu ninguém
sei combater, quiçá,
tanta planta de rapina
que tenho visto por cá.

— Essas plantas de rapina
são tudo o que a terra dá
diga-me ainda, compadre
que mais fazia por lá?

— Tirei mandioca de chãs
que o vento vive a esfolar
e de outras escalavras
pela seca faca solar.

— Isto aqui não é Vitória
nem é Glória do Goitá
e além da terra, me diga,
que mais sabe trabalhar?

— Sei também tratar de gado,
entre urtigas pastorear
gado de comer do chão
ou de comer ramas no ar.

— Aqui não é Surubim
nem Limoeiro, oxalá!
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá?

— Em qualquer das cinco tachas
de um bangüê sei cozinhar
sei cuidar de uma moenda,
de uma casa de purgar.

— Com a vinda das usinas
há poucos engenhos já
nada mais o retirante
aprendeu a fazer lá?

— Ali ninguém aprendeu
outro ofício, ou aprenderá
mas o sol, de sol a sol,
bem se aprende a suportar.

— Mas isso então será tudo
em que sabe trabalhar?
vamos, diga, retirante,
outras coisas saberá.

— Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.

— Essa vida por aqui
é coisa familiar
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?

— Já velei muitos defuntos,
na serra é coisa vulgar
mas nunca aprendi as rezas,
sei somente acompanhar.

— Pois se o compadre soubesse
rezar ou mesmo cantar,
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.

— Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como senhora, comadre,
pode manter o seu lar?

— Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.

— E ainda se me permite
que volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?

— é, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.

— E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?

— De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.

— E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim nesse lugar?

— Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar
não se precisa de limpa,
as estiagens e as pragas
fazemos mais prosperar
e dão lucro imediato
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.

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