25 de julho de 2011

Família não é uma empresa... (texto de Fabrício Carpinejar)

Família não é uma empresa ou como catar coquinhos

(texto de Fabrício Carpinejar)

"Estava na mesa-redonda da Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Ouvi atentamente a palestra de Içami Tiba, colega de painel, que falou de modo elétrico, seguro e convincente. É um orador no estilo de grande auditório, conciliando humor com exemplos. Mas, em algum momento, ele disse: “A família é como uma empresa”. E aquilo me incomodou profundamente. Aquilo me arrancou a audição. “É na família que forjamos vencedores. Se os filhos não obedecem, não fazem nada, tem preguiça para qualquer coisa, não ficariam numa empresa, é o mesmo processo.” Caso meu avô Leônida escutasse isso, soltaria um de seus xingamentos prediletos: "Vai catar coquinho e deixar de ser besta". A família não é uma empresa. Nem deve ser. Não vou demitir ninguém em casa. O pai ou a mãe não é o que queremos deles, mas o que eles podem oferecer. Estou de saco cheio de ouvir que uma família deve trazer rentabilidade, organização e competência. A cobrança não fixa um lar. Na minha residência, cada um tinha uma tarefa. Mas não era uma empresa, ou uma cooperativa. Não fui promovido. Não esperava cargos de confiança. Os irmãos me continuavam. Quando fui demitido uma vez do serviço, expliquei para minha filha de 4 anos o que havia acontecido. “O trabalho não me quis mais.” Ela respondeu bem calma: “São bobos, fique calmo, será meu pai sempre.” Eu dependo de um lugar para falir na minha vida. Deixe-me ao menos a família. Eu posso perder tudo, menos a família. A família é meu despertencimento, a adoração dos telhados, o avental no gancho da cozinha. Nem Deus, nem seus capatazes tiram aquilo que foi desejo. Podem subtrair minha memória, mas guardarei o desejo fora de mim. Em minha mulher. A família é o único lugar que continuaremos vivendo sem a expectativa de acertar. Mente-se diante da agenda, não de um prato de comida. Precisamos de um espaço para falir, para errar e se debruçar em nossas fraquezas. Já tenho que ser funcional no emprego, no lazer, nas relações com os outros. E agora a sugestão é que trabalhemos também na família. Isso é exploração infantil, isso é jornada dupla, isso é transformar elos naturais em conexões automáticas. A família depende de uma única coisa: a intimidade. E intimidade não é emprestada, intimidade é não pedir de volta. A família é o único lugar que me permite ser verdadeiro. É o único reduto de autenticidade. Não vamos colocar a competição dentro dela. Ou encher os nossos filhos de horários e de obrigações para que não pensem bobagens. Eles carecem das bobagens para escolher seus caminhos. Ser ocupado não nos torna importantes; não nos torna responsáveis. Envelhecer é se desocupar para a amizade. Quando pequeno, não fiz natação, não fiz inglês, não fiz informática, não fiz o raio-que-parta. Eu tinha o tempo livre depois da escola e jogava futebol com os colegas, roubava frutas e brincava na casa dos vizinhos. Voltava para a casa quando a mãe gritava: “tá na mesa!”. A infância é própria para a vadiagem. Quando iremos vadiar de novo? Se a família é uma empresa, um dia os filhos vão pedir demissão, um dia o pai e a mãe vão se aposentar, um dia os tios vão pedir concordata, um dia o genro vai desviar recursos. Na família, os laços são eternos e não provisórios como uma empresa. Família não é trabalho, família é experiência. E nunca haverá perdedores na família, mas irmãos e filhos e pais. Eles são a família, não um referencial de realização. Essa exigência de sucesso na família implica em não aceitar os perdedores. O que são os perdedores senão os mais sensíveis à pressão? Por isso, famílias se assustam com os problemas e escondem filhos alcoólatras, drogados e doentes em clínicas. Sofrem com a cobrança pública. Temem a exposição de seus defeitos. Família é ter defeitos, é ter fantasmas, é ter traumas. Frustração é não contar com uma família para se frustrar. Família é compreensão, não um acordo. Não temos que alimentar vergonhas de nossas vergonhas. Família é onde tiramos os sapatos e deitamos os casacos. Não promoverei reunião-almoço na minha sala. Não afastarei um parente pela malversação. Não solicitarei a restituição das mesadas. Não exigirei que minha filha escolha Medicina ou Direito pela estabilidade. Não condiciono minha paixão a resultados. Um patrão nunca será um pai. Não procuro disciplinar meus filhos, o amor é a mais suave disciplina. E o abraço é a minha desordem."

Fabrício Carpinejar


(imagem: Patrícia Metola)

4 comentários:

  1. MUITO obrigado por publicar essa coisa linda, que está fazendo o maior sucesso entre meus amigos e amigas mais sensíveis a essa questão...

    Só, como também blogueiro e escritor, sugiro que se busque sempre mencionar não só o autor, mas também a fonte original, de preferência linkando, quando esta for na internet. Quando se lê um artigo assim, muita gente encontra, como eu encontrei, razões para conhecer mais o autor, ver o texto em seu contexto original - quem sabe até citar em trabalhos nossos... e para isso tudo a gente precisa referências da fonte original.

    Como esse artigo já é de 2007, me custou certo trabalho localizar essa fonte, mas acabei topando com ela. Se alguém mais quiser, é a seguinte: http://www.fabriciocarpinejar.blogger.com.br/2007_09_01_archive.html#39876144

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  2. Olá Ralf,
    Que bom que você gostou do texto!
    Você está certo, eu procuro sempre linkar (ou citar) a fonte original... mas dessa vez encontrei o texto em meus arquivos pessoais e acabei não buscando o link da fonte original.
    Obrigada por ter encontrado.
    Já incluí na postagem!
    Um abraço,
    Sabrina

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  3. Maravilha!!!
    Que texto bacana, tb não quero ninguém pedindo demissão na minha familia e quando chegar a hora de se aposentar, faremos com dignidade!
    Adorei isso:" Envelhecer é se desocupar para a amizade".
    Que bom, viveremos esse tempo então!!!
    Um abraço, Rose.

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  4. Conheci esse figura ontem, pr acaso num programa de TV. Achei o cara totalmente demais, único, autêntico! Amei!

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